quarta-feira, 16 de março de 2011

A CANETA PARKER E UMA PEQUENA TRAGÉDIA





trilhos de bonde no Recife Antigo(foto do autor)
No "tem-tem" do bonde a gente ia levando aquela vida mansa , na rotina de casa pro colégio e do colégio pra casa.
Por isso, as emoções de qualquer descoberta eram supervalorizadas pela garotada afoita do meu bairro.
"Tem-tem" é a expressão mais próxima que encontrei pra imitar o barulho característico das rodas de aço do bonde, ao passar nas emendas dos trilhos altos e brilhosos, polidos como prata ao sol do meio-dia e traiçoeiros como o diabo nos dias de chuva, pra quem andava de bicicleta.
Uma das grandes aventuras da gente era saltar do bonde em movimento.
O salto tinha que ser perfeito, do estribo para a calçada, caindo nos calcanhares com o pé de apoio, normalmente o direito, para trás e os braços descontraídos mas abertos, para equilibrar o movimento no momento do contato como o solo que, para quem saltava, parecia uma esteira rolante em velocidade.
A gente aproveitava quando o bonde se aproximava o máximo do ponto de parada e quando ele já estava bem lento, saltava.
"reclame" de jornal da Parker 51 (google imagens)
Uma carreirinha curta depois do salto e pronto ... virávamos homens feitos em alguns segundos e saíamos, elegantemente, assobiando qualquer coisa e olhando de lado, pra ver se alguma menina bonitinha que estivesse por acaso sentada na ponta dos bancos do veículo admirava nossa maluquice.
Depois, era só curtir os comentários elogiosos e vangloriar-se um pouco, avaliando a velocidade do bonde com uma lente de -pelo menos- duas vezes de aumento.
Pra não dizer que estou contando vantagem, confesso que um dia me estrepei numa dessas peripécias.
Paizinho tinha me dado como presente de conclusão do curso de admissão ao ginasial, sua caneta Parker 51, uma jóia que hoje deve custar bastante a algum colecionador fanático e que eu já tive oportunidade de ver , Brasil afora, exposta em vários Museus, em posição de destaque.
Era linda minha Parker 51: corpo de baquelite grená escuro, tampa de 18 e pena de 21 quilates, sendo a tampa arrematada pela célebre seta característica da marca.  A bomba de tinta era de borracha de látex muito macia e a pena fazia gosto de ver e, principalmente, de escrever.
Vou, um dia, bem lampreiro no estribo do bonde e ao aproximar-se o mesmo do ponto de parada bem em frente ao portão do Colégio São Luiz, na calçada do palacete dos Batista da Silva, resolvi saltar à maneira dos aventureiros.
Pra que fiz isso?... a caneta, que estava no bolso da camisa, desprendeu-se na hora da minha desastrada aterrissagem e, desequilibrado, saí  "catando tostão", como se diz na gíria, tentando evitar um tombo maior.

Um dos últimos bondes da PTPC (do blog "Júlio Ferreira")

Não cheguei a cair de todo, mas a caneta pulou do meu bolso e foi direto, como se estivesse imantada, para a roda traseira do bonde.

Nem preciso dizer qual o seu estado, quando fui juntar os pedaços que sobraram  daquela prensagem entre a roda e o trilho: somente restaram a tampa amassada e a seta de ouro empenada, apontando pra mim, como a dizer: - Bobão.. você devia saber que isso podia acontecer a qualquer hora...
Nunca mais, até o último bonde calar o seu "tem-tem" alegre nas manhãs de Casa Forte, me dei ao direito de viajar no estribo.



(Do meu livro de crônicas "Caçador de Lagartixas", Ed.do Autor, impr. pela Editora Livro Rápido - Elógica, Recife, 2008)



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