Violão debaixo do braço, falta do que fazer nas noites de sexta-feira e sábado, vontade de impressionar as meninas, tudo isso somado às noites de lua cheia e ao romantismo bucólico de Casa Forte, terminaram por fazer de mim um seresteiro inveterado.
A gente se encontrava na Praça; não era nada muito premeditado, não. Chegava um, sentava num banco, no canteiro central, onde cresciam, soberanas, as vitórias-régias; afinava o violão e ficava por ali, dedilhando uns acordes, como quem não quer, querendo.
Daqui a pouco, outro aparecia e pouco depois já estávamos reunidos, uns quatro ou cinco, ensaiando canções novas e antigas; valsas e guarânias, baladas e ie-ie-iês de letras romanticamente adolescentes, como nós mesmos, nos idos daqueles anos 60.
As primeiras canções do Roberto... e também as antigas, de Nelson Gonçalves, de Orlando Dias, Francisco Alves. Um bolerão de Bienvenido, um tango de Gardel ou uma balada italiana, em versão cantada por Moacir Franco ?
Quem ditava o repertório eram as meninas do bairro. De acordo com os seus pedidos, construíamos a nossa cantoria de fim de semana.
Eu gostava mais das serestas nas noites de inverno, quando Casa Forte quase garoava.
Naquele tempo, fazia até mesmo um friozinho que exigia um agasalho, nada de muito quente, claro. Um blusão "James Dean", por cima da camisa, uma calça "Topeka", um topete bem penteado, devidamente firmado com brilhantina "Glostora" ou com a novidade do momento: o fixador de cabelos "Gumex", que não deixava cair a "trunfa" da rapaziada. Tudo isso conseguido com bastante trabalho pelo pente "Flamengo", comprido, de plástico inquebrável, sempre a postos no bolso de trás da calça.
Já tinha passado o tempo das alpargatas "Roda", de lona grossa e solado de corda, como também da calça "Far-West", substituída pela Topeka ou pela "Calhambeque", da grife "Jovem Guarda".
Mas, mesmo pra fazer serenata, e principalmente pra enfrentar o frio da madrugada, havia uma garrafinha de rum "Bacardi", carta-oro, sempre a postos, no outro bolso de trás da calça; era meio curva, já pra isso, e tinha o tamanho certo.
Um gole de rum, pra temperar a garganta, assustar o frio e afastar a timidez e pronto: começava a seresta, por volta das dez da noite, ali mesmo na praça. Depois, lá pras onze ou meia-noite, a gente ia fazendo uma caminhada lenta, entrando nas ruas onde moravam as meninas mais chegadas à nossa música e parando em frente à janela das suas casas, pra desaguar nossas melodias.
Tudo sempre corria às mil maravilhas e as meninas adoravam seus menestréis; mas, aí é que morava o perigo: de vez em quando, pra confirmar o que dizia Nelson Rodrigues (toda donzela tem um pai que é uma fera...) um pai afobado e ciumento estragava nossa festa.
Lembro bem do caso mais evidente dessas manifestações hostis de pais enciumados: um famoso promotor público do Recife, pai de três moças, primas de um dos seresteiros inveterados, interrompeu nosso cantar com um tiro de revólver, em plena madrugada.
O cenário: a gente caprichando nos "pinhos" e soltando a voz, cantando uma balada do repertório de Moacir Franco, "Doce Amargura" ; a garota pendurada na grade da janela do seu quarto, se deliciando com a canção; o apaixonado, que por mero acaso também se chamava Moacir, gesticulando de olhos semicerrados e mãos pro céu, porque era desafinado até pra dar bom-dia.
A ação: pelas sombras das paredes do terraço do casarão, o pai ciumento, de pijama listrado e trabuco na mão, avança como um tigre em plena caçada.
O desfecho: de repente, no seu vozeirão de acusador forense, grita pra gente... - Bando de malandros, desocupados, vou pegar vocês !... e atira pra cima, com o trabucão ...
Aquele revólver, no meio da noite e da nossa serenata, pareceu pra nós todos um dos "Canhões de Navarrone", tamanha foi a zoada do tiro: em dez segundos eu devo ter corrido uns cem metros, com o violão pendurado nas costas e o coração querendo sair pela boca.
Difícil foi juntar a turma toda depois dessa: tem gente correndo até hoje !