sábado, 26 de novembro de 2011

O CARDÁPIO DOS MONTEIROS

bolo de rolo
Boas mesmo eram as comidas que a gente fazia ou inventava.

Oriunda de Palmares, a família tinha lá seus quitutes consagrados nos livros de receita de Vovó Anna e Dindinha, que passavam pelas mãos das filhas e netas e até hoje são conservadas e, principalmente, apreciadas pelas novas gerações.


Vovó Anna e Dindinha eram peritas em doçaria: ninguém ganhava de Dindinha nos doces em caldas e compotas, devidamente acondicionados em compoteiras de cristal e oferecidas, com carinho, às visitas e principalmente aos netos.

Lembro-me, de água na boca, dos doces que eu gostava mais... todos: banana cortadinha em rodelas muito finas, com uma calda em que sempre havia uns cravos da índia para dar aquele sabor especial; batata doce, numa pasta deliciosa e macia; goiaba em calda, inesquecível; compota de doce de jaca, então, nem me fale...

Vovó Anna
Vovó Anna cuidava mais dos bolos.  E como! A gente ficava pedindo bis, quando ela nos servia seu famoso bolo de rolo. Propositalmente, não por economia, ela, na sua santa paciência, cortava umas fatias de bolo tão fininhas que a gente dizia logo:
-Vovó Anna, meu bolo tá transparente.. dá pra ver a senhora do outro lado !

A velhinha ria gostoso e nos repetia a dose. Agora, bom mesmo eram seus pastéis de nata. Ah, meu Deus, que delícia ! derretiam na boca e eram lindos de se ver: douradinhos na cobertura e com uma massa fina e macia, no ponto mesmo.

Também, pudera ! Ambas criadas em engenho de cana, conheciam os segredos dos doces pernambucanos e portugueses como ninguém. Vovó Anna, então, tinha um livro de receitas todo manuscrito, numa letra caprichada num português que às vezes eu nem entendia, tão cheio de enes, tês e erres dobrados, mais umas medidas estranhas, como libras de qualquer coisa, pitada disso ou daquilo, pontos enigmáticos, enfim, uma cabala gastronômica que, somente pelo seu mistério, nos atraía.

Dindinha (Maria Felipa)
Quando ela e Dedé de juntavam na cozinha, a meninada corria atrás. Primeiro, para saber que gostosura iria sair daquela reunião; segundo para lamber os alguidares em que sempre restava um pouco daquela massa doce e untuosa que iria ser transformada, pouco tempo de forno depois, num bolo maravilhoso, num pão-de-ló do outro mundo, num pastel de nata dos anjos celestiais.

Mas, havia uma certa ordem na hora da esperada "lambida do alguidar", e ninguém ficava chupando dedo... Vovó Anna e Dedé distribuiam, com justiça, a vasilha de barro pela fila de "lambões”, formada num canto da cozinha.

Com isso tudo, era natural que a gente procurasse imitar essas fadas dos sabores e quem levava mais jeito eram as meninas, claro... eu, de mestre cuca, até hoje, só aprendi a fazer duas comidas tipicamente "monteiro da cruz": arremate de feijão e mingau de cachorro. E continuo viciado nesses dois pratos.

O arremate era simplesmente caldo de feijão já pronto, em que a gente acrescentava um pouquinho, quase nada, de farinha de mandioca e uma porção de coentro picadinho, mais um tiquinho de manteiga. Ficava uma delícia ! O mingau de cachorro, ou pirão de ovo, também não tem mistério, tanto que até eu aprendi a fazer: alho, tomate, cebola, coentro e cebolinha picados, um pouquinho de molho de pimenta, água e sal, uma colher e meia de farinha de mandioca e, depois de mexida essa sopinha rala, um ovo quebrado em cima, só para ficar mal-cozido mesmo. Depois, mais uma colherzinha de manteiga, de preferência a de garrafa, e só.

Com as meninas ficavam os "cozinhados", feitos nos batizados de boneca, numa trempe armada no fundo do quintal, tudo feito em suas panelinhas de barro, que Mãezinha comprava na feira de Casa Amarela.

Havia, ainda, os lanches de última hora: churrasco de pão com manteiga, com um pão espetado no garfo, que era torrado diretamente na boca do fogão; sanduíche de pão com bolacha cream-cracker (esse foi invenção de Paizinho); pão quentinho (logo que chegava da padaria) com manteiga e açúcar; e outras maluquices mais que a gente inventava, somente pra enrolar a barriga antes do almoço ou do jantar e voltar depressa às nossas eternas brincadeiras.

(do meu livro de crônicas "Caçador de Lagartixas", Recife, 2008, ed. Livro Rápido)