domingo, 23 de fevereiro de 2014

OS COBRADORES


Anos atrás, não sei se 25 ou 30, por aí,  numa "carrocinha" da época, um fiatezinho de segunda mão, me deslocando pelo já complicado trânsito do Recife, rumo ao trabalho eu era assediado por menores ditos "abandonados", vendendo chiclete em sinal ou simplesmente pedindo ou tentando "lavar" os parabrisas dos carros com água suja recolhida dos canais fétidos do Recífilis,  pensava cá com meus botões: um dia eles não vão mais querer pedir, esmolar, uma condição melhor de vida.  

Eles irão exigir isso pelos seus métodos, um dos quais o mais óbvio:  a brutalidade, o instinto predador que se forma anos a fio de revolta e fome, de frustração e desencanto com o futuro.  

E as "autoridades" a quem compete a direção da cidade, do estado, do país, o que podiam fazer, sob nossa procuração concedida através do voto de confiança dado quando os elegemos, o que faziam por eles?  

Exatamente o que fazem hoje: nada. Nada a não ser piorar o que já era insuportável.  

Não precisava ser profeta para adivinhar que um dia tudo isso viria à tona, nas suas cores mais berrantes, nos seus ruídos mais distorcidos.  O que vivemos hoje é uma era de cobranças. 

Abusamos dos humildes, tripudiamos sobre os eternamente vencidos, desprezamos o grito dos miseráveis.  

Nós, os eleitores, e eles -principalmente eles, os eleitos- estamos recebendo agora essa cobrança. Quanto dinheiro dos nossos impostos, do nosso suor, desperdiçado ao longo dessas décadas! Quanta dor e sofrimento de toda essa massa obscurecida pela torrente invencível do tempo.  

Multiplicaram-se os cobradores. 

A miséria só aumenta, a cada filho indesejado, nascido nas enxergas das favelas.  O instinto de preservação faz, assim, aos miseráveis, aquilo que faz aos ratos. Procriam desesperadamente visando minorar sua miséria. 

Um paradoxo da natureza, esse instinto.  Quanto mais miséria se tem, mais miséria se gera. Poucos desses miseráveis tiveram o adjutório do destino, que lhes concedeu o momento de salvação e os tirou da roda viva da fome, do vício, da vida bandida. 

Estão agora, consciente ou inconscientemente, cobrando da vida o que a vida lhes negou, sempre. E nós, conscientes ou inconscientes, estamos pagando a conta. Enjaulando-nos em prisões de luxo, nossos apartamentos vigiados, trancados, inacessíveis, por enquanto.  Alguns, muitos, já não o são mais.  

As grades em geral separam bons e maus. Bons seriam os livres, maus os prisioneiros. O sinal inverteu, faz muito.  Hoje somos nós os prisioneiros.  A vida assim o decretou.  

Trancafiamos nossos sonhos num espaço minúsculo, enquanto que os "cobradores" vivem livres nas cidades que sonhamos um dia para os nossos descendentes.  

A paz dos campos com que sonhamos metamorfoseou-se nas batalhas campais a que assistimos hoje nos telões de led, aconchegados numa suposta paz dos lares. 
Aonde chegaremos?  Quem sabe?  Com sorte, se dosarmos nossas saídas ao mundo violento extra-muros, conseguiremos escapar ilesos por alguns anos mais.  

Não vejo muitas saídas. Inviabilizamos nossos sonhos, apagamos as luzes do progresso da humanidade, de que tanto nos orgulhamos um dia.

 A Hidra cresceu.  Com sete mil cabeças, não menos.