Anos atrás, não sei se 25 ou 30, por aí, numa "carrocinha" da época, um fiatezinho de segunda mão, me deslocando pelo já complicado trânsito do Recife, rumo ao trabalho eu era assediado por menores ditos "abandonados", vendendo chiclete em sinal ou simplesmente pedindo ou tentando "lavar" os parabrisas dos carros com água suja recolhida dos canais fétidos do Recífilis, pensava cá com meus botões: um dia eles não vão mais querer pedir, esmolar, uma condição melhor de vida.
Eles irão exigir isso pelos seus métodos, um dos quais o mais óbvio: a brutalidade, o instinto predador que se forma anos a fio de revolta e fome, de frustração e desencanto com o futuro.
E as "autoridades" a quem compete a direção da cidade, do estado, do país, o que podiam fazer, sob nossa procuração concedida através do voto de confiança dado quando os elegemos, o que faziam por eles?
Exatamente o que fazem hoje: nada. Nada a não ser piorar o que já era insuportável.
Não precisava ser profeta para adivinhar que um dia tudo isso viria à tona, nas suas cores mais berrantes, nos seus ruídos mais distorcidos. O que vivemos hoje é uma era de cobranças.
Abusamos dos humildes, tripudiamos sobre os eternamente vencidos, desprezamos o grito dos miseráveis.
Nós, os eleitores, e eles -principalmente eles, os eleitos- estamos recebendo agora essa cobrança. Quanto dinheiro dos nossos impostos, do nosso suor, desperdiçado ao longo dessas décadas! Quanta dor e sofrimento de toda essa massa obscurecida pela torrente invencível do tempo.
Multiplicaram-se os cobradores.
A miséria só aumenta, a cada filho indesejado, nascido nas enxergas das favelas. O instinto de preservação faz, assim, aos miseráveis, aquilo que faz aos ratos. Procriam desesperadamente visando minorar sua miséria.
Um paradoxo da natureza, esse instinto. Quanto mais miséria se tem, mais miséria se gera. Poucos desses miseráveis tiveram o adjutório do destino, que lhes concedeu o momento de salvação e os tirou da roda viva da fome, do vício, da vida bandida.
Estão agora, consciente ou inconscientemente, cobrando da vida o que a vida lhes negou, sempre. E nós, conscientes ou inconscientes, estamos pagando a conta. Enjaulando-nos em prisões de luxo, nossos apartamentos vigiados, trancados, inacessíveis, por enquanto. Alguns, muitos, já não o são mais.
As grades em geral separam bons e maus. Bons seriam os livres, maus os prisioneiros. O sinal inverteu, faz muito. Hoje somos nós os prisioneiros. A vida assim o decretou.
Trancafiamos nossos sonhos num espaço minúsculo, enquanto que os "cobradores" vivem livres nas cidades que sonhamos um dia para os nossos descendentes.
A paz dos campos com que sonhamos metamorfoseou-se nas batalhas campais a que assistimos hoje nos telões de led, aconchegados numa suposta paz dos lares.
Aonde chegaremos? Quem sabe? Com sorte, se dosarmos nossas saídas ao mundo violento extra-muros, conseguiremos escapar ilesos por alguns anos mais.
Não vejo muitas saídas. Inviabilizamos nossos sonhos, apagamos as luzes do progresso da humanidade, de que tanto nos orgulhamos um dia.
A Hidra cresceu. Com sete mil cabeças, não menos.
É triste, mas é verdade, caro Fred.
ResponderExcluirÉ isso, Walter. Enquanto as autoridades POR NÓS CONSTITUÍDAS não interromperem esse ciclo terrível (e tê meios para isso), viveremos sempre o terror nosso de cada dia.
ResponderExcluirDificilmente, essas "autoridades" não interromperão esse ciclo!
ResponderExcluirMeu caríssimo Fred, quando a gente lê um texto desses, que, além de ser de altíssimo nível, nos arremete frente a frente com um dos maiores dramas da sociedade (para mim o maior dos crimes), que é o abandono de crianças. Escrito por uma pessoa como Fred Monteiro, bem situado na vida e que poderia tranquilamente se manter indiferente e distante diante do sofrimento alheio, eu renovo minhas convicções de que nem tudo nesse mundo está perdido. Ainda existem seres humanos nesse planeta Terra que nos enchem de orgulho e que são dignos da nossa admiração, pois vivem semeando amor, esperança e fraternidade, coisa rara hoje em dia.
ResponderExcluirPeço licença, meu caro poeta Fred, para homenageá-lo com o poema abaixo que compus há algum tempo, quando deparei-me com um grupo de crianças abandonadas à própria sorte nas ruas de uma capital.
ABANDONO
Vivo nesse mundo
Com a esperança morta,
Vou de porta em porta
Em busca de guarida,
Catando as migalhas
Que sobram da vida.
Minha mãe foi embora...
Meu pai não conheço,
Não tenho endereço
Nem paternidade,
Sou um farrapo humano
Dessa sociedade.
No colo da rua
Embalo meus sono,
Somente abandono
Recebi de herança;
Nunca tive um lar,
Nem pude ser criança...
Todos os meus sonhos
Vão parar no lixo,
Vivo que nem bicho
Nessa selva urbana,
Injusta e covarde,
Fria e desumana...
Do nada nascido
ResponderExcluirAo nada tornado
Por ele levado
Ao vento parido
Já desiludido
Sem rumo e destino
Um velho franzino
Um mero indigente
Projeto de gente
Defunto menino
Nas ruas do Recife e das grandes cidades (hoje, até mesmo nas pequenas vilas de interior), a miséria reclama seu quinhão de piedade. Antes de os encararmos como trapos, sejamos também cobradores dessas autoridades sem escrúpulos e sem coração, antes que eles,os meninos-zumbis do progresso negado, nos venham cobrar a sua justa parte. Amigo Alamir, ser socialista e humanista no conforto dos gabinetes ou nas férias luxuosas em resorts da moda é muito fácil e prazeroso. Pena que essa cobrança passe ao largo dos incompetentes que juram amor ao povo, ao mesmo tempo em que o vampiriza e o torna escravo de um tosco regime assistencialista/populista. Mas o Brasil deverá acordar em breve para essas evidências.
GENTE, ONDE É QUE EU ASSINO?
ResponderExcluirJá assinou, Zulma. Você aqui neste Blog também é titular. Como diria o Augusto Nunes, vocês fazem parte do timaço de comentaristas deste arremedo de blog. Abração!
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