terça-feira, 1 de novembro de 2011

SAUDADE DA FAZENDA PEREIROS

Um jeep Willys, do tempo da Guerra, buzinava na frente de casa.. Dentro já estavam Tio Moacir e tia Maria, mais uns três primos e primas, mas sempre cabia mais gente. E bicho também...
Aí subíamos, Paizinho, Mãezinha, eu e mais um ou dois irmãos, afora nossa cadela setter, perdigueira, chamada Cherry, que ia fazer companhia a Doroty, a setter de meu tio, ambas exímias caçadoras de codornizes.
E no meio dessa balbúdia, seguíamos em direção a Lajedo, numa época em que só havia estrada pavimentada até Caruaru. Depois daí, até a fazenda Pereiros, eram só estradas de terra, de piçarra, cheias de pedras e buracos, delimitadas pelas cercas de aveloz das propriedades à margem.
Pereiros fez parte dos meus melhores dias de criança.
Era uma Fazenda bem grande, no agreste pernambucano, e pertencia em comum ao esposo da minha tia Neda, Paulo Otaviano e seu irmão José.
Tio Paulo, grandalhão e bem humorado, apesar de calado e aparentemente sisudo, tinha sempre o maior prazer em receber a família em Pereiros e nos dava toda a atenção.
Nas férias de julho, quando o inverno pintava de verde a região e enchia os açudes da Fazenda, o friozinho agradável convidava a gente a soltar a imaginação e viver, ali, nossos sonhos infantis, alimentados pelos muitos filmes de faroeste que assistíamos no Cine Luan.
Poder cavalgar, como a gente fazia, era simplesmente fantástico e tudo o que queríamos, mal chegávamos em Pereiros, era pegar um pedaço de corda e sair pelo campo atrás dos cavalos que -daí por diante- iriam ter muito trabalho.
Eu tinha uma preferência especial por Asa Branca, um rudado baixinho e amigável, que se transformava num raio quando era solicitado; principalmente quando uma rês escapava da boiada. Reflexo condicionado da lida com os vaqueiros no meio da caatinga, por ocasião da "junta do gado" ou das tarefas de "apartação", que sempre ocorriam nos diversos "cercados" do pasto bem cuidado da propriedade.

Quando visitei Pereiros pela primeira vez, eu ainda pequeno, lembro-me de haver montado os dois carneiros da raça merino que lá havia: Jasmim e Guarani, donos de uma lã macia, bem fortes e altos.    Se ficavam meio parados, a gente tinha um truque para fazê-los correr na hora: um puxão na sua cauda curta. Os carneiros disparavam, e muitas vezes nos deixavam largados no chão, sob as vaias dos primos que aguardavam sua vez de montá-los.

Em Pereiros, sempre acompanhavámos os nossos pais e tios nas caçadas.  Havia muita codorniz e nhambu, ou lambu, por lá.  Quando eu estava mais taludo, junto com outros primos, fizemos algumas caçadas com espingardas soca-soca. As vítimas eras as rolinhas caldo-de-feijão, que chegavam em bandos, à beira dos açudes.  A gente se escondia, ficando nas "esperas" do mato, e quando as bichinhas pousavam, era uma chacina... sempre matávamos umas dez ou quinze mas, depois da caçada, nós mesmos as depenávamos e -bem assadas- comiamos com prazer e farofa.
Claro que hoje eu jamais repetiria isso, mas na época era muito natural e não ficávamos com o menor traço de remorso dessas caçadas.    Luiz Gonzaga cantou magistralmente essa situação, num baião muito conhecido: "Teve pena da rolinha que o menino matou.. mas depois de assar a bichinha e comer com farinha, gostou..  Por conta disso tudo, um dia desses resolvi versejar sobre essas lembranças do interior, e saíram essas quadras :

Jumento zurrando
A besta no cio
E a onça esturrando
Na beira do rio

Lagoa coalhada
De jia e caçote
A cobra no bote
já desenrolada

a lua brincando
c’ a nuvem  vadia
na boca do dia
os "passo" piando

É essa a lembrança
Qu’ eu guardo , cansado
De um tempo passado
Na velha fazenda
Cigano sem tenda
Sem muita esperança
Um velho-criança
Um pobre coitado.



O texto inicial faz parte do livro "Caçador de Lagartixas", Recife, 2008-Ed.LivroRápido.  As quadras estão publicadas no Jornal da Besta Fubana -www.bestafubana.com)