quarta-feira, 3 de julho de 2013

O CORSO E O LANÇA-PERFUME


Os trilhos do bonde ainda corriam pelo centro da rua de paralelepípedos.

Havia um certo charme europeu nas lojas de tecidos e confeitarias das ruas Nova e Imperatriz.

No carnaval era ali o foco do "corso", das brincadeiras, do desfile dos blocos, clubes e troças.

Fantasias para todos os gostos se faziam notar, vestidas por meninos e meninas, moças e rapazes dos quatro cantos do Recife.

As varandas dos casarões eram enfeitadas com muitas serpentinas coloridas e máscaras de papel.

Famílias residentes ou proprietárias de alguma loja ou casa de comércio tomavam conta das calçadas e dali viam passar o carnaval.

E nós participávamos disso tudo, quando Paizinho começava a preparar o Land Rover para o Corso.

Era uma festa pra gente. Paizinho tirava a capota do jeep, colava umas máscaras, serpentinas e confetes pela carroceria, abaixava o vidro dianteiro e então o jeep ficava no clima da festa.


Havia, aliás, quem retirasse o escape do carro ou botasse no final do cano um apito que era outra loucura carnavalesca.

Devidamente incrementados seguíamos para o centro da cidade.

Já na rua da Imperatriz, entrávamos naquela fila de carros enfeitados e igualmente barulhentos para "fazer o Corso", isto é passear pela cidade ao som de alto-falantes presos nos postes tocando frevo o tempo todo, orquestras de frevo em palanques ou a pé fazendo a alegria do povo que não parava de chegar e de dançar.

Das calçadas ou do meio da rua mesmo, jatos de lança-perfume, bisnagas com água, serpentinas, confete e talco, muito talco, marcavam a festa.

Nisso passávamos toda a tarde, entrando pelo início da noite, até que o Land Rover nos levasse de volta à Torre, exaustos mas felizes.

De brincadeira sadia e familiar, o Corso foi-se transformando, por força da perversidade de alguns, num desfile de maldades.

Começaram a surgir os casos de agressão explícita e incontrolada. Aos poucos, por volta dos anos 60, era quase impossível encontrar alguém de bom senso nesses desfiles outrora tão cordiais.

O lança-perfume passou a ser usado como droga; a água das bisnagas foi trocada por água de esgoto, quando não por urina e até ácidos; o talco foi substituído por lama ou graxa retirada dos feixes de molas dos próprios veículos... enfim, um circo de horrores logo proibido pela polícia, ora à força de portarias, ora ao poder dos cassetetes.

Deste tempo guardo uma imagem cruel: uma linda menina, dos seus 15 ou 16 anos, num grupo de garotas fantasiadas de japonesas, com coloridos quimonos de seda, sombrinhas de papel, flores de cerejeiras nos cabelos, foi brutalmente agredida por um "play-boy" que, pulando de um jeep azul, passou a mão embaixo do carro, lambuzando-a de graxa e incontinenti emporcalhando a fantasia da garota, o seu rosto e o seu cabelo.

Apesar dos gritos da moça, ninguém conseguiu impedir que o marginal voltasse ao jeep e, aos gritos, fugisse por uma rua mais vazia.

Perdeu o Recife, perderam as pessoas civilizadas, que sabiam fazer do carnaval um motivo de alegria e confraternização. Repetiu-se a História: voltou, em meados do século 20, o costume bárbaro do entrudo do século 19, já esquecido entre as traças das gavetas de alguma delegacia do Recife Antigo.

(Do livrode crônicas "Caçador de Lagartixas", Recife, Livro Rápido, 2008)