sábado, 8 de janeiro de 2011

MUITO REAL

Mal soou o sinal de largada, os quase 100 corredores esqueceram a distância que teriam de enfrentar e precipitaram-se rumo à Avenida Rosa e Silva, início da "I Maratona da Jaqueira", numa quente tarde recifense de Novembro.

Logo após a confusão das primeiras centenas de metros, os grupos foram-se formando, alguns logo se destacando, em razão da velocidade dos corredores que os compunham.Formei num pelotão intermediário, com cerca de dez corredores e entramos numa cadência uniforme, até os primeiros nove quilômetros.A esta altura, já havíamos vencido parte do trecho urbano da prova (Parnamirim, Casa Forte, Apipucos, Dois Irmãos) e seguiamos pela BR-101 (Cidade Universitária) em direção ao Aeroporto, via Avenida Recife.  Por volta do km.12, o pelotão dispersou-se: alguns seguiram à minha frente, outros foram ficando para trás.


Concentrado na corrida, prossegui sozinho até o km. 21, após haver cruzado toda a extensão da Avenida Recife, com seus muitos conjuntos habitacionais, fábricas e depósitos. O trecho da orla marítima de Boa Viagem amenizou o calor dessa primeira hora e meia de corrida. Além do mais, com o sol posto, a temperatura tenderia a cair. Até os 28 quilômetros, acompanhei outro pequeno pelotão que, aos poucos, foi seguindo em frente.

Novamente corria sozinho, ao subir o Viaduto Joana Bezerra. No posto d'água do km. 30 verifiquei meu tempo de corrida: 2 horas e 36 minutos. O desgaste provocado pelo calor e pela distência começaria a pesar bastante, nesse trecho apropriadamente chamado de "barreira".
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Foi a partir do km. 32 que notei, ao meu lado, uma presença estranha... travamos um diálogo feito de frases curtas:

- Bastante quente o tempo aqui, não ?

- É, respondi. A umidade também está muito alta...

- Na minha terra, o clima é quente, mas um pouco mais seco, disse o estranho.

- E você, o que faz por lá, afora correr?

- Exatamente isso... corro. Sou mensageiro profissional. Estou sempre correndo.

Notei que ele usava uma roupa esquisita e calçava sandálias antigas de couro, amarradas com tiras, nas pernas. Corria com um desembaraço e estilo que não deixavam dúvidas quanto à sua afirmativa: era, realmente, um profissional. Mas, se assim era, por que acompanhava um corredor mais velho e lento, como eu ?

- Desde quando você começou a correr ? perguntei para reiniciar a conversa

- Desde que entrei para o Exército, respondeu. Atualmente, sirvo ao General Milcíades.

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A essa altura, já havíamos subido o Viaduto de Olinda e tomado o retorno do Centro de Conveções. Estávamos no km. 36 e ainda faltavam seis quilômetros para o final. Nesse trecho mais crítico da prova, esqueci o corredor e continuei, concentrando meu pensamento no momento da chegada, a fim de amenizar um pouco o desconforto físico geral, provocado por mais de três horas de corrida.

Depois da curva do Clube Português, na retomada da Avenida Rosa e Silva, um súbito "estalo" de memória fez-me olhar para o lado.

O corredor continuava firme, trocando passadas no exato ritmo em que eu prosseguia. Seu aspecto era de absoluta tranquilidade. Não se notava nele o menor vestígio de suor, enquanto que as minhas roupas estavam completamente encharcadas.

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Faltando menos de um quilômetro para a meta de chegada, em frente ao Parque da Jaqueira, mal contendo a emoção, arrisquei uma pergunta:
- Antes da Batalha, você correu mesmo aqueles 240 quilômetros até Esparta ?

- Claro !, respondeu-me o corredor. Ida e volta, em dois dias e duas noites. Logo depois, o General Milcíades pediu-me que fosse até Atenas para levar ao Rei a notícia da nossa vitória. Então, corri de Maratona a Atenas e transmiti o recado.
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Emudeci... um nome, apenas um nome, ocupava agora toda a minha mente: FIDÍPEPES.. a lenda da Batalha de Maratona. FIDÍPEDES, o semi-deus ! Faltavam poucos metros. No asfalto, em grandes letras amarelas, alguém da Organização havia escrito: 'VOCÊ É UM HERÓI !"

A minha batalha estava ganha. Cruzei a meta, desta vez sorrindo. Fidípedes seguiu à minha frente, em direção ao Parque. Ainda voltou-se e dirigiu-me um aceno. Depois, sumiu na noite.

Recife, novembro de 1989

6 comentários:

  1. Me arrepiei aqui.

    Espero encontrá-lo algumas vezes esse ano nas corridas, quem sabe ele não me dá uma força? Vou precisar, estou doente aqui em Cambridge e nada de conseguir treinar... E alguma meia maratona é a meta este ano.

    Abraço,
    Mário
    http://aspiranteacorredor.blogspot.com

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  2. Meu caro Neto..Nesses 28 anos correndo aprendi que nada é impossível para quem se dedica ao esporte. Você vai, com toda a certeza, completar sua meia-maratona esse ano. É questão de determinação e treinamento. Você tem o perfil de maratonista e vai completar muitas e muitas maratonas pelo mundo e pela vida afora ! Grande abraço e cure logo essa gripe..

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  3. Muito boa a história. Realmente se não conversamos com nossa mente, sem esse diálogo incesante pararíamos fácil, mas enquanto você
    "conversa", você corre. Logo chega a melhor hora, a travessia da linha de chegada e a sensação de dever cumprido.
    Mais uma vez Parabéns.
    Abraço,
    Bruno Pataxó
    http://viverbemseuestilodevida.blogspot.com/

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  4. essa narrativa tem dois aspectos que eu, pessoalmente gosto: o da realidade, o sofrimento da prova e a vibração da chegada, e o outro, que é a "viagem" mental que fazemos para driblar o cansaço da verdadeira loucura que é correr uma maratona, não importa quantos treinamentos você tenha feito para corrê-la bem.. eu, p.ex., cumpri oito treinamentos completos num período de uns 4 anos.. ou seja, estava sempre preparado para duas maratonas anuais, mas por motivos de trabalho e mesmo das muitas provas que foram desmarcadas (bahia, rio, paraíba), somente corri 3 maratonas, todas com tempos que consegui melhorar..a primeira 4h16m (joão pessoa, percurso com muitos quilometros de ladeiras), a segunda também em JP, em 4h12m e a terceira no recife (largada às 3,30 da tarde, já pensou? eram 4,30 de um horário de verão !) nessa fiz meu melhor tempo: 3h39m (e eu tinha 44 anos)... pois foi nessa que bati esse papo com meu amigo fidípedes !

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  5. Eu viajava nessa história qdo era pequena! Eu pensava que papai realmente tinha visto Fidípedes!:D

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  6. Fred Monteiro doido n° 50, 39° colocado na I MARAJA29 de janeiro de 2011 às 13:19

    e vi..e corri com ele, mesmo..se não, como eu teria terminado essa danada de maratona? pra correr maratona você tem que afrouxar os parafusos do juízo.. aí você vê fidípedes, sua vó que morreu faz tempo, vê também o et de varginha, a mula sem cabeça, papai noel e até
    uns cinco "leprenchauns" pelo caminho.. menina: são 42 quilômetros viajando na maionese.. cabra bom do juízo não faz não.. desiste na largada, hehehehe

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