quarta-feira, 28 de setembro de 2011

ANA LÚCIA E O CÔCO DE OLINDA

Certa vez, em meados de 2002, a pedido de um amigo o baterista Fernando Souza, aceitei  o convite para gravar uma senhora que é uma referência entre os "coquistas" de Olinda:  Ana Lúcia, do Coco do Amaro Branco.  Dona Ana é uma das mestras mais queridas entre a comunidade que adotou o "côco de roda" como forma de expressão musical.  Suas loas simples e poéticas varam as noites e os terreiros onde se cultua essa forma singela e antiga de música e percussão. 
Anos depois, vejo editado, em primoroso CD essas e mais outras músicas do repertório de Ana Lúcia e sinto irreprimível orgulho de ter participado da divulgação dessa arte popular.

Gravei, nesse meio tempo outros excelentes coquistas, todos de Olinda: Amaury (Acordes das Olindas), Viola, Aurinha (filha de Dona Selma do Côco) e uma grande incentivadora dessa arte, a Professora Isa Melo, do Grupo Serra Véia..

Montei e trago para vocês, um pot-pourri com os cinco temas por mim gravados, com Ana Lúcia, seu coral e os batuqueiros trazidos por Fernando Souza.  São loas tradicionais e da sua criação (Boa noite, Lua Bonita (adaptação da canção folclórica), Jogador, A Natureza e Me Leva, Canoeiro.)

A temática simples, a música e o rítmo em seus estados mais puros se evidenciam, como nunca, nesses artistas por vezes tão esquecidos, mas que têm um valor incomensurável na formação do tesouro musical nordestino.

Nas imagens, ainda, os autógrafos dos amigos coquistas Amaury, Viola, Isa e o Grupo Serra Véia, Andreza e Aurinha, gravadas na parede do estúdio, entre os muitos autógrafos de artistas que por lá passaram, desde 1997.




Aqui, o som puro do côco da Mestra Ana Lúcia:



A CÂMARA ESCURA


O meu primeiro contato com a fotografia foi um encontro mágico com uma arte que depois se tornaria uma paixão constante na minha vida. E essa paixão me foi transmitida por Paizinho.
Num dos banheiros da casa da Torre, ele montava seu laboratório fotográfico ou "câmara escura", conforme se dizia no meio.
E ali, às voltas com suas bandejas, vidros, produtos químicos, tanque de revelação, lâmpadas vermelha e verde, ampliador, câmeras e papéis, ele realiza uma alquimia que me marcou para sempre, desde a primeira vez que dela participei.
Paizinho, sempre muito aplicado naquilo que faz, não podia ser diferente com relação à fotografia.
Tinha um equipamento de primeira linha, como uma câmera Agfa portátil, daquelas de fole, mais uma Flex-A-Ret, então concorrente da famosa Rolei-Flex.
Uma câmera 6X6, "twin-lens", ou seja com lentes duplas, e visor de vidro fosco que até hoje -na era digital- ainda faz sucesso entre colecionadores e aficionados.
Seu equipamento de ampliação era da mesma marca, com tempo de exposição controlado por cronômetro próprio e outras regalias da época.
Como viajava muito, trazia-nos sempre paisagens de lugares distantes, em fotos preto-e-branco de excelente qualidade.
Selecionava os melhores negativos e os ampliava até o tamanho de 21x15, em papel linho/fosco, o que dava às suas fotos uma qualidade profissional, mesmo.
O que mais eu gostava de ver, era o momento da ampliação. Num tempo em que não existia televisão, aquilo me parecia milagroso.
O negativo era projetado num pedaço retangular de papel durante segundos e em seguida o papel era levado ao banho de solução reveladora.
Aí o milagre acontecia..
No branco do papel, começava a aparecer muito lentamente uma imagem tênue, que aos poucos ia se tornando nítida, até se transformar num quadro vivo, indelevelmente impresso. Em seguida, uma rápida lavagem na torneira para ir ao banho com solução fixadora (hipossulfito de sódio) na bandeja ao lado. Depois, mais uma lavada, e o papel era pendurado para secar.
Eu ficava o tempo todo inquieto, acompanhando o processo e mal contendo a emoção de presenciar aquela maravilha da tecnologia pouco mais que cinqüentenária, então.
Infelizmente, tive também o desprazer de ver um dia, numa enchente sofrida em Casa Forte, 1966, todo o acervo fotográfico do meu pai virar uma lama pastosa dentro da gaveta de um armário, levando junto todas as lembranças da nossa infância, fotografada com tanto carinho por ele.
As poses e instantâneos de quando éramos os seus modelos fotográficos preferidos, ou as paisagens magistrais que ele captou nas suas viagens sumiram como por um desencanto brusco, uma alquimia às avessas que me doeu muito fundo e também me marcou para o futuro.

Tanto que, traumatizado com essa perda inestimável, passei a fotografar e filmar, tão logo pude, tudo quanto me aparecia pela frente, na ânsia de guardar as imagens e perpetuar as lembranças, coisa que até hoje continuo a fazer com grande prazer, louvando e agradecendo sempre aos meus mestres Daguèrre, Lumière e Frederico Monteiro, por me terem mostrado essa possibilidade de parar o tempo e adiante revivê-lo com toda a intensidade contida em 1/30, 1/60, 1/120, 1/500 de segundos que valem, às vezes, por uma vida inteira.

(do livro de crônicas "Caçador de Lagartixas")